
A proposta de reforma do Código Civil brasileiro que começou a tramitar no Senado no final de janeiro traz várias mudanças nas relações familiares e patrimoniais, como o aumento da liberdade para planejar a própria herança.
Há regras que permitem excluir da divisão dos bens cônjuges e filhos que tenham abandonado os pais. O texto indica que podem ser removidos da sucessão os herdeiros que “tiverem deixado de prestar assistência material ou incorrido em abandono afetivo voluntário e injustificado contra o autor da herança.”
Ao mesmo tempo, é possível destinar uma parcela maior do legado a alguns herdeiros.
As sugestões de alteração no Código Civil foram elaboradas por uma comissão de juristas e apresentadas formalmente como um projeto de lei (PL nº 4/2025) pelo ex-presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
O Congresso irá analisar a modificação ou revogação de 897 artigos e o acréscimo de 300 dispositivos, em relação aos 2.063 existentes no Código atual, que tem mais de 20 anos. Muitas dessas mudanças, distribuídas em vários capítulos, esbarram em questões sucessórias.
O texto prevê, por exemplo, que o cônjuge não será mais considerado “herdeiro necessário”, um retorno à regra vigente até 2002. Também não concorrerá com descendentes –ou ascendentes, na ausência de filhos– pela parcela do patrimônio sobre a qual o falecido não pode indicar livremente ao definir os beneficiários, a chamada herança legítima de 50%.
No limite, o “cônjuge ou convivente” poderá ficar sem nada, explica o advogado Alessandro Fonseca, especialista em gestão patrimonial, família e sucessões do escritório Mattos Filho, citando o exemplo de uniões com separação total de bens.
Na comunhão universal ou parcial, continua valendo o direito do cônjuge à meação (metade do patrimônio comum do casal) sobre o que foi adquirido durante o convívio.
Atualmente, ele também concorre como herdeiro pelo patrimônio anterior ao casamento, por exemplo. Pelo projeto, cônjuges só entrarão na lista da sucessão legítima na ausência de descendentes e ascendentes.
O texto também diz que a Justiça pode garantir usufruto de determinados bens para subsistência do cônjuge que comprovar insuficiência de recursos ou de patrimônio, valendo também o direito de habitação em caso de imóvel único onde os dois viviam até constituição de novo patrimônio ou família.
“As pessoas falam: ‘Casei com separação total e absoluta de bens, estou protegido patrimonialmente’. Você só está protegido para um divórcio. Mas se você falece, o cônjuge concorre com os filhos ou com os ascendentes no recebimento desse patrimônio”, afirma o advogado ao explicar a legislação atual.
“[Pela proposta] eu posso dizer que, na hipótese de falecimento, o cônjuge não vai perceber nada dos bens particulares que vão ser divididos entre descendentes ou ascendentes. É possível fazer isso via testamento ou pacto no momento do casamento.”
Atualmente, não é possível afastar o cônjuge da condição de herdeiro por testamento, o que será permitido se a mudança for aprovada, afirma Silvia Felipe Marzagão, especialista em direito de família e sucessões e sócia no Silvia Felipe e Eleonora Mattos Advogadas.
“Se eu quiser deixar o cônjuge completamente desatendido, sem nenhum tipo de herança, posso fazer isso pelo novo código. Hoje, não consigo afastá-lo”, afirma a advogada, que também preside a Comissão Especial da Advocacia de Família e Sucessões da OAB-SP.
A extinção do direito de concorrência sucessória de cônjuges e companheiros, especialmente no regime de separação de bens, foi uma das principais sugestões recebidas nos canais disponibilizados pelo Senado para discussão sobre o tema, segundo o texto de justificativa do projeto.
Os argumentos são a “progressiva igualdade entre homens e mulheres na família”, o ingresso da mulher no mercado de trabalho e o fenômeno crescente das famílias recompostas.
O advogado do Mattos Filho avalia que as alterações em relação às sucessões familiares representam uma flexibilização positiva da legislação atual e um maior respeito à vontade e à autonomia das partes.
Por outro lado, são alterações que abrem espaço para mais disputas familiares e podem aumentar o tempo de análise dos inventários, por causa de critérios subjetivos, afirma a presidente da comissão da OAB-SP.
Um dos artigos, por exemplo, diz que será possível destinar até um quarto da parcela legítima da herança a descendentes e ascendentes que sejam considerados “vulneráveis ou hipossuficientes”, critério que ela avalia que poderá ser questionado na Justiça pelos herdeiros prejudicados.
A mesma questão se aplicaria à disponibilização imediata, antes da partilha, de 10% da cota do herdeiro com quem “comprovadamente” o autor da herança conviveu durante os últimos tempos de vida “e que não mediu esforços para praticar atos de zelo e de cuidado em seu favor”.
“Abriu-se uma subjetividade que antes não havia. O juiz passa a definir coisas que dependerão de provas, de contraditório, da instalação de um processo que vai atrasar os inventários”, afirma Marzagão. (Bahia Notícias)